A relação entre uma mãe e sua filha ou seu filho começa pela via sonora, já na barriga. O primeiro porto seguro do bebê que sai do útero é a voz da mãe. Cada palavra soa como música para os pequenos e atentos ouvidos do recém-nascido.
Os dias que seguem são responsáveis por uma ampliação sensorial: o cheiro da mãe, o gosto do leite, a textura do peito e a sinfonia de ruídos do mundo externo, além da melodia principal, a voz materna.
A visão, nesse começo, é um sentido coadjuvante. Mas sobe ao topo da pirâmide à medida em que as crianças crescem. Essa mudança é acompanhada da conquista da linguagem e da progressiva objetivação do mundo, ao mesmo tempo em que há um decréscimo imenso da nossa capacidade lúdico-sensorial.
Não que a visão seja um sentido objetivo, avesso à fantasia. O problema são os usos atrelados a ela pela nossa sociedade. As crianças são cada vez mais estimuladas via visualidade: tablets, telefones, jogos e brinquedos (ainda que analógicos). O espaço da imaginação sensorial vai diminuindo. E com ela, mingua nossa capacidade de se relacionar com o mundo livre de pré-conceitos, que são, grosso modo, mapas visuais que orientam nosso julgamento. Eles nos permitem inferir que um menino brincando com uma boneca rosa é ou será afeminado. O mesmo princípio servirá para uma menina de cabelo curto jogando futebol e para inúmeros outros casos que vão além do gênero e da sexualidade.
Os ritmos da vida
A música e o som são, a meu ver, atenuantes dessa situação, pois ao lidarmos com outras variáveis que não apenas visuais, estimulamos também novas expectativas no processo de percepção do mundo. Ouvir música, fechar os olhos, perceber os sons ao redor são exercícios importantes, pois podem nos ajudar e ajudar nossos filhos a sobreviver, sempre que necessário (e recomendado) longe das telas.
Quanto mais novos, mais fácil encantá-los com música e pequenas brincadeiras sonoras. Aprender a imitar sons de animais pode ser tão rico (ou ainda mais) do que aprender a desenhá-los. Distribuir instrumentos sonoros a um grupo de crianças é um caminho para mantê-las conectadas entre si, mesmo que ainda não tenham idade para brincar em grupo. A vida outdoor torna-se ainda mais interessante quando percebida pelos mistérios sonoros que ela apresenta. Brincadeiras guiadas por motivos sonoros (usando vendas nos olhos, apitos, canções, instrumentos, parlendas etc.) podem funcionar como um detox sensorial, acalmando o olhar, ensinando a perceber o mundo e as pessoas de forma mais livre e lúdica.
O despertar do ouvido e a empatia na infância
O despertar do ouvido de nossos pequenos pode ser, ainda, um caminho para a empatia, conceito que tem na base a escuta do outro. Por isso comecei esse texto falando da relação entre mãe e filho (além, é claro, do intento de homenageá-las pelo seu dia). Se a empatia pressupõe perceber o outro, compreendendo suas necessidades, existe um exemplo mais profundo, verdadeiro e completo que o de uma mulher que consegue ler o corpo de outro ser, indefeso e incapaz de se comunicar pela linguagem, alimentando-o com tudo o que precisa?
O desafio dos pais é ouvir e decifrar o bebê, afim de mantê-lo vivo. As mães costumam ser mais efetivas na leitura dos sinais emitidos pelas crianças, não apenas nos primeiros meses, mas ao longo da infância, quando não da vida. Essa capacidade é, acredito, fruto de uma relação de confiança, estabelecida em termos sensoriais (e auditivos). O timbre da voz da mãe, a melodia do choro da criança, o ritmo da mamada harmonizado ao dos batimentos da mãe: são todos elementos musicais que compõem esse pacto de amor incondicional que é projetado na gestação e firmado a partir do nascimento, dia a dia.
Ser mãe: entre ruídos e canções
O efeito que a canção materna tem sobre nós, mesmo na vida adulta, é imensurável e intraduzível, especialmente porque está além do âmbito do visível.
A maternidade é um mosaico complexo. Nós homens temos uma vaga ideia do que de fato seja. Convivemos com mães na condição de filhos e pais. Mas sofremos e fazemos sofrer por não entender em profundidade o que significa ser mãe.
Os limites entre nossos corpos e o de nossos filhos são tão claros que dificultam nossa percepção da fusão e das concessões a que estão sujeitas as mulheres que se tornam mães. Nossas decisões e julgamentos estão tão fixados na matriz da visão racional que raramente conseguimos ouvir aquilo que não é visível ou traduzível pela linguagem, anulando, muitas vezes, a essência feminina que canta dentro de cada mulher.
Essa playlist está dedicada às mães e mulheres desse mundo, não apenas para homenageá-las nesse domingo, dia das mães. Mas sobretudo para nos lembrar da importância de ouvir como uma mãe ouve seu bebê: com o corpo todo, conectando-se.
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