Dias de 12 horas de trabalho, finalizados com happy hours regados a bebida alcoólica e cigarro, sem tempo para relações familiares e outros objetivos que não relacionados ao mundo corporativo, marcaram os últimos anos antes da grande virada na vida de Aline Lima. Por fora, mantinha a casca que a protegia e a posição de força que a segurava. Por dentro, lutava contra a não aceitação da condição de mulher negra e o medo de rejeição adquirido de experiências da primeira infância. “Estava a ponto de desabar. Vi que precisava procurar ajuda e consegui dizer para mim mesma: ‘Você está machucada, amiga, vem aqui que vou cuidar de você’”, conta Aline, hoje com 32 anos, educadora emocional e coach, especializada em empoderamento feminino.
Inicialmente, Aline foi buscar refúgio na Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional (SBIE), onde passou por um processo terapêutico com respiração holotrópica – técnica que usa ciclos profundos e acelerados de inspiração e expiração para levar a estados ampliados de consciência. Foi nessa ocasião que recuperou a memória dos abusos sexuais que havia sofrido quando tinha cerca de seis anos de idade e entendeu por que sentia tanta raiva dos homens. Acabou por descobrir que sua mãe e sua avó carregavam traumas semelhantes. E assim começou – e não parou mais – o processo de cura do seu feminino ferido.
Formada em Direito e com MBA em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas, nessa época Aline era diretora administrativa de uma emissora de TV de São Bernardo do Campo, ao mesmo tempo em que cursava pós-graduação em Gestão de Pessoas e Psicologia Organizacional na Universidade Metodista. Após fazer três treinamentos na SBIE, matriculou-se em um curso no Instituto Brasileiro de Coaching. Em seguida, participou do programa Crie seu caminho, da plataforma online de desenvolvimento pessoal Moporã, onde desenhou uma transição de carreira de dois anos para passar a atuar como coach.
O poder das mulheres
Durante esse período, Aline fez uma variedade de cursos, treinamentos, vivências e formações. Em uma delas, da Universidade de Sabedoria Ancestral, com sede na Colômbia e atividades no Brasil, teve que organizar um círculo de mulheres. “Foi lindo. Vi que, quando estamos em roda, conectadas, é como se pudéssemos sentir o que a outra sente. Foi quando enxerguei o real poder da mulher. O poder de amar, acolher, compartilhar, colaborar”, relata.
No mesmo ano de 2016, uma viagem de férias para o sudeste asiático, usando apenas o dinheiro economizado em cigarro desde que havia parado de fumar, se mostraria um divisor de águas. No Camboja, chorou pela dura realidade da população e encarou suas sombras, ao perceber o “mundo cor de rosa” no qual vive e o tamanho da sua responsabilidade em ajudar as outras pessoas. A experiência seguiu pelo Vietnã, onde sentiu a dor coletiva de um povo que enfrentou uma guerra. Ao cruzar a fronteira para o Laos por terra, viu sua mente ameaçada de entrar em pânico. Estava em um ônibus cheio de homens vietnamitas que parou de repente. Ela não sabia onde estava ou o que se passava – e ninguém lhe explicava. Foram horas sem dormir, à espera da abertura do controle de imigração. Foram horas de respiração, meditação e recitação do mantra “vai passar”. E passou. Quando chegou à Tailândia, em meio ao Festival das Luzes, sentiu a redenção de uma nação budista que acolhe seu caminho, mesmo com tragédias.
Filha de uma sacoleira e um sindicalista separados desde quando tinha quatro anos, Aline passou a adolescência como bolsista em uma escola particular, dividida entre a realidade social contrastante dos familiares e dos colegas. Queria ir para missões de paz na África. Via as soluções distantes de si. A viagem pela Ásia a fez refletir sobre o que estava fazendo para melhorar o mundo ao seu redor.
Assim que voltou para o Brasil, sentindo pulsar a necessidade de expressar esse propósito, foi convidada pelo Moporã para ser facilitadora do programa de empoderamento feminino Sou Mulher. E assim passou a se conectar com mulheres de todo o país e apoiá-las em seus processos. Ao mesmo tempo, começou a atender mais como coach e percebeu que suas clientes eram todas mulheres. Foi entendendo, então, que seu propósito estava definitivamente ligado ao feminino.
O florescimento do feminino em todos
Aline diz que despertar a energia feminina não é necessário apenas para as mulheres, apesar de elas serem as protagonistas nesse processo. “A humanidade precisa mudar. Estamos caminhando para um colapso ambiental e social. Chegou a hora de gerarmos uma nova sociedade, na qual todo mundo entenda que não adianta eu ter se o outro não tem. E essa visão mais solidária vem do feminino.”
Na vida pessoal, ela tem vivenciado isso com o companheiro. “Ele acompanhou a minha transição e também se permitiu despertar a energia feminina. Nos momentos em que percebia comportamentos influenciados pelo patriarcado, tinha a humildade de dizer ‘me desculpa’ e ‘me ensina’. Tem sido muito importante, pois a gente não consegue ser feminista só com as mulheres. Precisamos dos homens também.”
Práticas para manter o feminino equilibrado
O trabalho de empoderamento feminino, como de todo o desenvolvimento pessoal, nunca acaba. E é preciso sustentá-lo no dia a dia. “Não adianta achar que começou o processo e está garantido”, alerta Aline. Por isso, ela mantém práticas como reservar momentos para o silêncio, tirar cartas de tarô e plantar sua lua (recolher o sangue menstrual e devolvê-lo à terra como fertilizante).
Para quem não sabe por onde começar, ela dá uma dica simples. “Investigue qual é sua maior dor agora. E pesquise sobre o assunto na internet. Há muitas mulheres compartilhando suas experiências. Acredito que, quando o aluno está pronto, o mestre aparece, e pode ser, inclusive, seu mestre interior”.
Aline segue buscando. Uma de suas mais recentes aventuras foi um ensaio com a fotógrafa Thaís Marin, no intuito de selar a autoaceitação e afirmar o corpo como símbolo de resistência, em vez de objeto de desejo. Com uma irmã adotiva branca e de cabelo liso, na qual enxergava muita beleza, Aline demorou anos para se apreciar como mulher negra. Agora, vê a sobrinha, cujo pai é negro, enfrentar a mesma dificuldade e sente a responsabilidade de mostrar para ela e outras mulheres que é possível aceitar não apenas o corpo, mas tudo que se é.
Simultaneamente, Aline está no fim de sua transição profissional. Desde janeiro, está se dedicando integralmente ao trabalho de educadora emocional e coach. “Um ciclo se fechou. Foi uma morte. E um renascimento.”
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