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Revista Pátio – Brincadeira e Diversidade

Andar por uma loja de brinquedos pode ser uma experiência antropológica bastante interessante. Mesmo antes de entrar, vê-se uma divisão clara entre o universo masculino e feminino. De um lado, predominam as cores rosa e lilás, em vitrines compostas por máquina de lavar, ferro de passar e bonecas — muitas bonecas. De outro, o cenário é desenhado em azul, marrom, preto e cinza, com carrinhos, bicicletas e bonecos de super-heróis. “O mais triste e chocante é que todos os jogos cerebrais estão na área masculina!”, lamenta Tânia Ramos Fortuna, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do projeto “Quem quer brincar?”. Para Tânia, a mensagem é que quem pensa, reflete e inventa é o homem; ele é quem tem inteligência pra jogar um jogo de tabuleiro. “No nosso país, essa divisão do feminino e do masculino, muito separados e tipificados, continua presente”.

As mães que o digam. Deborah Saldanha Fazio procurou muito uma cozinha em cores “neutras” para seu filho Lorenzo, de 3 anos, tanto em lojas físicas quanto na internet. Em uma loja de brinquedos educativos, foi informada de que o produto estava em falta. Sem desistir da ideia de incutir no filho o senso colaborativo para as tarefas domésticas, Deborah continuou sua procura. “Acabei comprando um fogão de madeira, pequeno, com detalhes em rosa e visualmente feminino”, conta. “Para ele, não existe diferença. Para mim, o que importa é que meu filho se divirta, faça bagunça e crie suas fantasias!”.

A doceira Daniela Torres Abreu teve a mesma atitude quando percebeu que a filha caçula, de 2 anos, tinha interesse por super-heróis. “A Juju é apaixonada pelo Buzz Lightyear, do Toy Story. Um dia, fomos a uma loja de conveniência e ela escolheu um bonequinho, daqueles que vem bala dentro, do Iron Man. A bala acabou há um mês e ela segue brincando com o Iron Man, que acende. Ela ama!”, conta a mãe. Hoje, além do Buzz, Juliana tem um Homem Aranha e um Homem de Ferro. “Eu dou força porque sou a favor das diferenças. É o que torna cada um único e especial!”.

Daniela tem razão. Segundo a diretora de Educação do Instituto Alana, Ana Claudia Leite, a diversidade é uma mola propulsora para o desenvolvimento humano. “Quanto mais possibilitarmos a relação com o diferente, mais as crianças conseguirão se formar e também se reconhecer como parte de uma cultura, de algo maior, que vai além de seu próprio gueto”, explica. “Essa aposta promove a aprendizagem em todos os níveis: emocional, ético, estético. Trata-se de uma experiência muito mais rica do que quando temos o contato somente com o idêntico”, ressalta.

Cores neutras

Não é fácil encontrar brinquedos representando ferramentas, panelinhas, ferros de passar e outros utensílios considerados “de menino” ou “de menina” em cores variadas. Em geral, os poucos que existem são importados e vendidos a preços pouco acessíveis. Como a procura tem aumentado, a realidade começa a mudar gradativamente. A fabricante de brinquedos Xalingo percebeu essa nova demanda e, este ano, começou a fabricar a Cozinha Top Chef, produzida em vermelho, preto e branco. De acordo com a gerente de marketing da empresa, Tamara Campos, o lançamento está tendo uma ótima aceitação. “Também temos outros brinquedos com características inclusivas, como casinhas em amarelo, cinza e marrom, cavalinhos em rosa, branco e azul e skates para meninas, entre outras novidades que devem mexer com o mercado em 2017”, revela a gerente.

As sócias Carol Moreira e Bruna Chervezan, do Ateliê Materno, de Florianópolis, fabricam brinquedos artesanais em madeira e livres de estereótipos de gênero. A cozinha e a oficina mecânica produzidas por elas são feitas em cores neutras, inspiradas na pedagogia Waldorf e no método Montessori, que incentivam a autonomia, o desenvolvimento psicomotor e a criatividade da criança, destacando-se a premissa de que todos os brinquedos são para todas as crianças. “Brinquedos rigidamente segmentados por gênero dizem às crianças quem elas devem ser, como se comportar e pelo que se interessar”, observa Carol.

Segundo a empresária, esse tipo de pensamento imposto pelas grandes marcas de brinquedos e pela publicidade infantil normalizou a ideia de que meninos e meninas são essencialmente diferentes uns dos outros, e essa ideia tornou-se a base de vários dos nossos processos sociais de desigualdade. “Por isso, incentivamos as meninas a brincar com ferramentas, os meninos a brincar de cozinha, sem limites para o desejo individual de cada criança”, explica Bruna.

O presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista da Costa, afirma que muitas empresas têm dado maior atenção a essa “neutralidade” do brinquedo. Ele destaca que tal fato evidenciou-se entre os lançamentos da Abrin, a maior feira para os negócios do setor na América Latina, realizada entre 5 e 8 de abril em São Paulo. “Pode-se perceber desde kits de cozinha na cor azul até figuras de ação de personagens femininas”, exemplifica. Costa ressalta que a quantidade e a variedade de produtos à disposição sempre acompanham a demanda do mercado. E esclarece: “Se há baixa procura dos consumidores, o investimento em determinado item é repensado. Essa é a dinâmica de qualquer mercado, não só o de brinquedo, e não considera questões étnicas ou de gênero”.

Bonecas negras

Atenta à dificuldade de encontrar bonecas negras, a ONG Avante — Educação e Mobilização Social, de Salvador (BA), criou a campanha “Cadê minha boneca?”, chamando atenção para a falta de brinquedos miscigenados no Brasil e convidando a população a colaborar. A resposta foi imediata. “O impacto foi muito maior e mais veloz do que pensávamos. Temos recebido mensagens, fotos e vídeos de todos os cantos do país”, conta Ana Marcilio, idealizadora e porta-voz da campanha. A iniciativa mobilizou mães, pais, professores, militantes, mulheres e jovens. Alguns falam nas dificuldades para encontrar os brinquedos junto ao comércio, outros mostram onde encontrar as bonecas, outros ainda contam que as produzem. Para Ana, no entanto, o caminho a ser percorrido ainda é longo. “Almejamos alcançar um impacto no acesso às bonecas, alcançar o resultado de chegar a uma loja de brinquedos e encontrar, em quantidades representativas e por um valor similar, as ‘nossas bonecas’”, explica.

Laura Capri, mãe de Marina, de 3 anos, precisou mandar fazer uma bonequinha japonesa para a filha, porque não encontrou nenhuma para comprar. Já as bonecas negras com as quais presenteou a menina, Laura achou na primeira loja que visitou, mas as opções eram poucas. “Não havia a mesma variedade quando comparado com a das bonecas loiras ou ruivas”, compara. “Outras etnias são difíceis de encontrar. Bonecas com necessidades especiais, então, nem se fala! Com exceção de alguns sites na internet, com preços mais elevados, não consegui encontrar nenhuma”, lamenta.

Todos podem se divertir

Brinquedos adaptados permitem que crianças com e sem deficiência brinquem juntas

Se adquirir bonecas que contemplem as diferenças é difícil, encontrar brinquedos adaptados para crianças com necessidades especiais é ainda mais raro. Por essa razão, o Instituto Mara Gabrilli, que desenvolve e executa projetos que contribuam para a melhoria da qualidade de vida de pessoas com deficiência, lançou uma cartilha destinada a pais e educadores para auxiliar na criação de brincadeiras e na produção de brinquedos adaptados a crianças com deficiência.

A cartilha é distribuída nos mutirões do projeto social “Cadê Você?”, que localiza, orienta e encaminha pessoas com deficiência residentes da periferia de São Paulo e está disponível para download gratuito no site da instituição (institutomaragabrilli.org.br).

O Instituto Mara Gabrilli já realizou oficinas para ensinar a confeccionar brinquedos inclusivos como paliativo para um mercado que ainda não contempla de maneira satisfatória as necessidades especiais em seus produtos. “Estamos no processo de incorporação de valores de acessibilidade, inclusão e respeito à diversidade, e é extremamente importante que o mercado de brinquedos também incorpore esses valores”, destaca Camila Benvenuto, diretora do instituto. “Por meio da diversão, as crianças desenvolvem características como criatividade, inteligência, imaginação, agilidade, coordenação e autonomia. No caso da criança com deficiência, o despertar dessas habilidades é fundamental para um futuro autônomo”, ressalta Mara Gabrilli.

Mais do que vontade de promover a inclusão por meio da brincadeira, é preciso sensibilidade para perceber como colaborar para a mudança. E isso Rodolfo Fischer tem de sobra. Após perder a filha Anna Laura, com apenas 3 anos, em um acidente de carro, Rodolfo Fischer e a esposa, Claudia, decidiram homenagear a filha por meio de ações concretas. Durante uma viagem a Israel, eles conheceram brinquedos acessíveis. Na volta ao Brasil, criaram o projeto Anna Laura Parques Para Todos, que permite a crianças com e sem deficiências brincar umas com as outras, interagir e desenvolver-se em um local seguro, criado e mantido sob as melhores normas e conceitos.

O primeiro parque foi inaugurado em 2014, na AACD da Mooca, na capital paulista. Em 2015, mais dois foram doados: um à prefeitura de São Paulo, instalado no Parque do Cordeiro, e outro à APAE de Araraquara. Neste ano, estão sendo desenvolvidos três parques — em Natal (RN), Recife (PE) e Cascavel (PR) —, por meio de acordos com instituições donatárias, com a exigência de que abram as portas para o público externo em horários predefinidos. “Todas as crianças, de qualquer raça, credo, origem ou condição, deveriam se sentir ‘incluídas’. Daí a importância de parques onde todas possam brincar, parques que eu simplesmente gosto de chamar de acessíveis”, afirma Rodolfo Fischer.

Na Escola Estadual José Alves Quito, em Corguinho (MS), a brincadeira é parte fundamental do processo de inclusão e aprendizagem. O atendimento educacional especializado, que inclui brinquedoteca e sala de recursos, promove o uso de brincadeiras e jogos para que crianças e adolescentes possam aprender de maneira prazerosa, atribuindo significado a cada etapa de aprendizagem. “No processo inclusivo, é importante que saibamos respeitar a singularidade de cada aluno, compreender o seu ritmo, seus anseios e suas preferências, propiciar momentos de debate e compartilhamento de ideias, demonstrar as inúmeras possibilidades de construir o conhecimento e deixar que os avanços ocorram de modo espontâneo e natural”, explica a pedagoga Daniely Rodrigues Araújo, que faz parte do projeto.

Daniely destaca que os avanços na aprendizagem e no cotidiano de alunos que apresentam alguma deficiência são incontestáveis. “Muitas vezes, eles precisam apenas acreditar em suas capacidades, resgatar a autoestima, superar traumas ou frustrações”, afirma. “Com isso, a socialização acontece, a participação nas aulas flui naturalmente, o comportamento modifica-se e, finalmente, o estudante está inserido de corpo e mente no ambiente escolar”, ressalta.

Para a professora Tânia Ramos Fortuna, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), brincadeira talvez seja uma das maneiras mais exitosas de promover a inclusão, porque a lógica da brincadeira é inclusiva. “A brincadeira, talvez como nenhuma atividade, confronta diretamente cada sujeito consigo mesmo e com os outros”, observa a professora. “Para que ela se realize, todos precisam brincar”.

  • REPORTAGEM // Daniele Zebini​

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